A medicina não cansa de me intrigar:
Não tem nada mais instigante e arrepiante do que se debruçar sobre a clínica. A medicina tem aspectos que são diferentes de uma formação acadêmica clássica. Primeiro a medicina não se enquadra em um campo do saber. Mal se pode enquadrá-la no campo da saúde, o conhecimento dos processos fisiológicos vão além da questão do completo bem estar biopsicossocial. Quando se debruça sobre o conhecimento total do corpo humano passa a ser um processo também de admiração da natureza e seu funcionamento. Nesse sentido tem-se a dimensão do autoconhecimento e também da contemplação da criação. Nesse ultimo aspecto é um ato de honra ao Divino.
No que tange à racionalização, operacionalização e síntese de campos do saber, a medicina é exclusiva pelo fato de não se encerrar ou evoluir na dependência única da evolução tecnológica e das técnicas modernas. A todo momento e em boa parte da prática médica, nossa condutas são totalmente baseadas em critérios puramente propedêuticos - técnica de palpação, percussão, ausculta, ectoscopia -, enfim, a validade dos sentidos interagindo com a novidade tecnocrática (que vai no sentido de cada vez mais driblar os vícios dos sentidos, que podem enganar), dando-se prioridade à arte mesmo, é demais. Nada mais prazeroso do que confirmar sua suspeita de exame físico, mostrando de uma vez por todas que "a clínica é soberana!".
Outra coisa instigante é como essa parte, digamos assim, arte, se propaga ao longo do tempo: é por mera tradição oral! Ainda que tenhamos os "Portos", "Marios Lopez", "Levis", "Coopers", ainda assim, só se aprende com alguém do lado, mostrando, treinando e passando a experiência pessoal.
A medicina a todo momento interage o velho e o novo. Compila toda a ciência com seu rigor de raciocínio, que é fantástico. Mas também compila toda a capacidade de observação sensível (de sentidos - tato, olfato...) do universo que nos cerca.
Então quer dizer que a medicina para no processo de racionalização? Não! Temos ainda o domínio da linguagem corporal, de ver os não ditos, de ter a sensibilidade de perceber o outro e suas nuances. A observação atenta é fundamenta! Não existe ciência que explique isso no consultório.
Outra capacidade médica muito peculiar é a técnica da entrevista! Aprendemos como ninguém como se pergunta e se deixa perguntar e responder. Temos que saber como ninguém que existe um campo de linguagem de dois mundos, do médico e do paciente e que, se quer mostrar competência, cabe ao médico romper esse campo e extrair dali informações relevantes. E nesse sentido não se limita à perguntas que tangem a natureza das queixas, sinais e sintomas. A busca é como entender o adoecer do paciente. É saber em que ponto o ato de "chegar no consultório", está o processo de adoecimento do paciente. Veja! É entender que o paciente escolheu aquele momento da sua doença para inserir um novo personagem: o médico. Esse agente, no julgo do paciente, é capaz de dali em diante interferir na sua saúde. Ele deu a liberdade de o médico entrar dali em diante. Um processo dinâmico.
A outra dimensão é a da caridade. Nenhuma outra formação lança, com tanta potência, uma pessoa no campo das sensações e sentimentos, na mesma exigência de que, no meio do turbilhão de emoções, ter a capacidade (uns chamam de frieza) de intervir e resolver os problemas das pessoas. No meio das emoções fortes, deve se lembrar de toda aquela arte, técnica, tecnologia, entrevista e tradição de modo a ajudar o próximo.
Que interromper uma doença de forma sagaz, tem um pouco de ego, não tenha dúvida. É a única formação que dá tamanha sensação de poder; é como se saíssemos da faculdade com um "spell de jogos de RPG". Mas quando vemos a avidez com que os médicos estudam os casos clínicos, nem de longe o ego explica sozinho. Ego nenhum pode afastar um médico tanto tempo da família, amigos, lazer e boas noites de sono. É medo! medo de não saber ajudar. De ver o outro sofrer e não ter nem uma palavra de conforto para dar. É também vontade: vontade de ajudar, de ver alguém sair com um pouco mais de dignidade do seu consultório ou do hospital.
Por essas e outras (outras que com certeza exigiram novos textos complementares a este), que medicina nem de longe pode ser chamado de profissão. Medicina é um privilégio, é uma missão. A medicina não implica em relação produção e retorno moeda, nem produção, venda de força de trabalho. Não! Médico não vende força de trabalho. Nem se pode chamar o exercício médico de trabalho. Os honorários são uma questão de justiça. Nunca vi um médico durante uma RCP achar que estava trabalhando.
A medicina é o compêndio da evolução dos saberes, é parte da ordem (manutenção) da sociedade viável, é uma compreensão da evolução e da criação. É o ordenamento racional onde casam perfeitamente, fé e razão.
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